Os socorristas de crianças

São carpinteiros, padeiros, professores, engenheiros, farmacêuticos, estudantes, gente normal. O país deles está desfeito. Eles também. Síria e sírios são país e gente esquecida, o socorro é prestado pelas pessoas mais improváveis – que estão nomeadas para o Nobel da Paz, embora algumas já não estejam vivas.

Khaled Omar ouviu um choro vindo dos escombros, ouviu o que mais ninguém ouviu – ele que ouvia e sabia do que os outros – e escavou durante horas até encontrar o bebé. Socorrista dos White Helmets, distinguia-se dos demais colegas por ter resgatado mais bebés e crianças do que qualquer outro. Morreu este ano, em agosto, atingido por uma bomba. Khaled Katib, também socorrista do grupo, viu três colegas de trabalho morreram ao seu lado, atingidos também durante um bombardeamento, também levado a cabo pelo regime sírio, com o apoio da força aérea russa. Mahmoud Rislan, o fotógrafo que captou o vídeo de Omran Daqneesh, o menino de cinco anos filmado sentado numa ambulância que comoveu o mundo, chorou muito no momento e chorou muito naquela noite, naquela noite em que “toda a gente chorou”. Abo Alezz é dos poucos médicos que ainda não morreu ou fugiu de Alepo. Ele resiste. E vai continuar a resistir, a defender o seu povo, “nem que para isso tenha de pagar com o seu próprio corpo”. A Síria onde eles vivem está desfeita. Eles também…

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Publicado originalmente no Expresso Diário (29-09-2016).

White Helmets: “Salvar uma vida é salvar a Humanidade”

São cerca de 3000 voluntários, sobretudo homens, antigos professores, médicos, padeiros, carpinteiros, farmacêuticos. Também há estudantes. Praticamente todos os dias são chamados a socorrer vítimas de bombardeamentos, que dizem ser, quase na totalidade, da autoria do regime sírio e das forças aliadas russas. Muitos deles foram também já vítimas de ataques aéreos e morreram. São os White Helmets, uma força de socorros não-governamental que atua na Síria. Estão nomeados para o Nobel da Paz, cujo vencedor é anunciado a 7 de outubro.

Salvar uma vida é salvar a Humanidade”. É este o lema dos quase 3000 voluntários que formam os White Helmets, uma força de socorros não-governamental que atua na Síria. É isto que os move. Que os faz arriscar a vida todos os dias para salvar outras vidas. Arriscar e riscar – mais de 135 voluntários já morreram e outros tantos hão de morrer. Há de ser assim. Enquanto houver guerra na Síria, há de ser assim.

Este mês, dia 6, morreram quatro membros do grupo. Em agosto, dia 26, morreu outro, Zaher Muhammad Ali. O nome não nos diz obviamente nada. Antes disso, a 19, dois dias depois de Mahmoud Rislan, fotógrafo, ter captado o vídeo de Omran Daqneesh, o menino de cinco anos que foi resgatado dos escombros da sua casa semidestruída, atingida por um bomba, e que se tornou conhecido – e dias depois esquecido – nas redes sociais, morreu Manar Abu Mohammed. Antes dele tinha morrido Khalid Houh, outro nome que obviamente não nos diz nada. Podíamos continuar a descer a lista, mas não vale a pena. São só nomes para nós. Nomes sem história, sem um rosto em que assentar a imaginação.

Foi precisamente por saberem deste anonimato, destas histórias por contar e destes exemplos ainda não tornados exemplares, que o britânico Orlando Von Einsiedel e Joanna Natasegara, nascida igualmente no Reino Unido, realizador e produtora, respetivamente, de “Virunga”, vencedor do Óscar para melhor documentário em 2014, decidiram filmar o dia a dia desta força de socorros formada sobretudo por homens – mas também algumas mulheres –, antigos engenheiros, médicos, professores padeiros, carpinteiros (há também muitos estudantes), que se têm voluntariado para salvar vítimas de bombardeamentos em Alepo, uma das maiores cidades da síria e das mais afetadas pela guerra civil.

O minidocumentário, produzido pelo Netflix, tem o nome do grupo, “White Helmets”, e vai estar disponível em streaming a partir desta sexta-feira. “Esperamos que as pessoas vejam isto, que se deixem inspirar pelos White Helmets e que deem a conhecer o grupo a outras pessoas, nomeadamente através das redes sociais. Esperamos que este filme ajude a quebrar preconceitos, em particular aqueles que incidem sobre os homens da Síria, e que ajude a perceber, através dos factos, o que se passa no país”, disse Orlando Von Einsiedel, também realizador de “Skateistan: To Live and Skate Kabuk” (2010) e “Aisha’s Song” (2012), em entrevista à “Newsweek”.

O documentário de 40 minutos abre com uma sequência de imagens de bombas a cair sobre os edifícios e de aviões a cortar rapidamente os céus. Seguem-se várias cenas de crianças, lá em baixo, em terra, de cara e roupas cobertas de pó, a chorar, e de outras a ser transportadas por membros da força de socorros para ambulâncias ou, simplesmente, para locais mais seguros, abrigados, onde os aviões não veem e as bombas não chegam.

Antes disso, bem no início, há um voluntário dos White Helmets, Khaled Farah, que se despede da filha de pouco anos, antes de partir para o campo de batalha e extermínio que é a Síria atualmente. Mais de 400 mil pessoas já morreram desde o início da guerra civil no país, fez em março cinco anos.

“Não dês muito trabalho à mãe, está bem?”, diz Khaled Farah à filha, despedindo-se com um beijo. Já no exterior, vemo-lo caminhar, rumo nem ele sabe bem onde, onde houver bombas a cair naquele dia – e nunca se sabe onde elas vão cair, até caírem efetivamente – e a atingir prédios ou hospitais ou escolas ou mesquitas. Ou mais do que um destes alvos. Um, pelo menos, há de ser quase de certeza. Todos os dias é assim.

Numa das mãos, Khaled leva um capacete branco, que é também a cor dos capacetes dos seus colegas do grupo. É madrugada, ou pelo menos assim parece – pelas cores e tons que vai ganhando o céu e porque não se vê ninguém nas ruas. Khaled Farah não é identificado no trailer, mas sabemos o seu nome porque já o vimos antes, num vídeo divulgado no site dos White Helmets, em que ele recorda uma das experiências mais marcantes por que passou desde que pertence ao grupo.

Aconteceu em junho de 2014. Uma bomba-barril lançada por aviões do regime sírio de Bashar al-Assad atingiu um edifício de três andares, que se desmanchou em segundos. Voluntários do grupo foram chamados ao local. Estiveram dezenas de horas a escavar, à procura de vítimas debaixo dos escombros. Pararam para descansar quando chegaram à conclusão de que não havia mais sobreviventes, mas, de repente, ouviram o choro de um bebé vindo debaixo dos mesmos escombros.

Khaled Omar, outro voluntário que viria a ser atingido por uma bomba lançada igualmente por aviões do regime daí a um mês, recomeçou então a escavar e, ao fim de outras tantas horas – era preciso escavar muito devagar, para evitar movimentos em falso que pudessem trazer um desfecho trágico à situação –, encontraram finalmente o bebé. Khaled puxou-o pela roupa até à superfície e ele apareceu finalmente, sujo de pó, a chorar ainda mais. Tinha apenas 10 dias de vida. Chamaram-lhe o “bebé milagre”. Porque “milagre” é a única palavra que pode ser usada para descrever o que aconteceu naquele dia.

O documentário acompanha sobretudo o dia a dia de três voluntários dos White Helmets que treinam no sul da Turquia, por não ser seguro fazê-lo na Síria, e voltam para Alepo. Repetem esta rotina várias vezes. É esta a sua rotina. Mesmo quando estão na Turquia – e isto é algo que o realizador destaca na entrevista à “Newsweek” – eles estão a pensar na Síria, estão continuamente agarrados ao telemóvel para saber o que se passa no país. “Eles estão a viver a guerra a nível muito psicológico”, aponta o realizador britânico.

Khaled Khatib, membro do grupo, demonstrava precisamente isso numa entrevista recente ao Expresso. Encontrando-se atualmente na Turquia depois de ter estado dois meses em Alepo, dois meses em que diz ter sentido medo todos os dias, Khaled não vê a hora de voltar novamente à cidade síria. “Temos esperança de que a guerra termine em breve. Quando isso acontecer, vamos começar a reconstruir a Síria para que os refugiados possam voltar para as suas casas”.

Os White Helmets estão nomeados para o Prémio Nobel da Paz. O vencedor do prémio é anunciado no dia 7 de outubro.

Jornal Expresso (16-09-2016)