Francisco Aguiar D.R.

“O amor que não se esquece a pensar que amanhã se há de esquecer”

“Luís Severo”, o novo disco homónimo do músico português de 24 anos, depois do magnífico “Cara d’Anjo”, é sobre o amor e a cidade. Esta quinta-feira, Luís Severo subiu ao palco do Teatro Ibérico, em Lisboa, pela segunda vez esta semana, depois de os bilhetes para a primeira data, na quarta-feira, terem esgotado.

 

Luís Severo é um dos nomes da música portuguesa mais falados por estes dias. O músico de 24 anos acaba de lançar um disco homónimo pela Cuca Monga, editora e promotora dos Capitão Fausto, dois anos depois de “Cara d’Anjo”, em que deixou de ser O Cão da Morte para se apresentar em nome próprio. “Luís Severo” é, segundo a descrição oficial, um disco sobre “o amor, a solidão, a cidade e a sua falta de espaços”. Sobre o amor-paz, o amor-companhia e o “amor que não se esquece a pensar que amanhã se há-de esquecer”. Sobre o futuro e o medo do futuro do amor que acabou. E sobre uma cidade, Lisboa, gentrificada, massificada, descaracterizada, encerrada.

Em entrevista ao Expresso, sentado à mesa de uma padaria em Arroios, Luís Severo compara o novo disco com o anterior e explica como o facto de ter optado por um método diferente de escrever canções, “mais livre”, em que “a letra aparece como acessório à música e não o contrário”, e de ter gravado o disco noutro estúdio e com outras pessoas, com “ouvidos frescos e ideias diferentes”, veio mudar tudo. Fala, além disso, sobre a “pressão” do segundo álbum, que chega com questões como: “Mas o que é que ele vai fazer agora?” A essas questões dessas pessoas responderíamos agora: Foi isto que ele fez… e não podia ter-se saído melhor.

Esta quinta-feira, Luís Severo sobe ao palco do Teatro Ibérico, em Lisboa, pela segunda vez esta semana, depois de os bilhetes para a primeira data, na quarta-feira, terem esgotado, quando faltava ainda mais de uma semana para o concerto.

Amor-paz, amor-companhia, “amor que não se esquece a pensar que amanhã se há-de esquecer”. Quantos amores diferentes cabem neste disco sobre o amor?
As canções “Lamento”, “Boa Companhia” e “Meu Amor” foram escritas em alturas diferentes, por isso têm intenções diferentes e representam momentos diferentes. Não são sequer comparáveis. “Boa companhia” é sobre a evolução do compromisso no espaço e no tempo. “Meu Amor”, que foi a primeira canção 100% romântica que escrevi, sem qualquer pingo de mágoa ou outras coisas mal resolvidas, é sobre o amor-paz, como disseste, e no fundo opõe-se a “Boa Companhia”. Das três, a primeira que escrevi foi “Lamento”, que fala sobre o ciúme e o tempo que perdemos com ele e como isso é inútil e perigoso. “Boa Companhia” talvez seja a que mais se aproxima ao espírito da cidade conforme ela é retratada no disco. “Lamento” e “Meu Amor” são as cartas fora do baralho.

Porque é que “Meu Amor”, por ser sobre o amor-paz, opõe-se a “Boa Companhia”?
Porque “Boa Companhia”, apesar de ser uma canção alegre, acaba por falar de coisas más que em “Meu Amor” se finge que não existem, como a insegurança em relação ao futuro e experiência de viver um compromisso numa grande cidade, num tempo em que tudo parece apelar a não ter grandes compromissos em relação a nada – trabalho, amigos, casa, amor, companhias. “Meu Amor”, pelo contrário, não fala sobre o medo do futuro nem sobre o medo de que o amor acabe.

Com qual é que te identificas mais neste momento?
Essa questão de me identificar muito ou pouco com as canções tem mais a ver com questões técnicas do que propriamente com aquilo que escrevi em cada uma delas. Tendo a ter uma relação distante com as canções, no sentido em que deixo de as avaliar em termos de autenticidade para passar a avaliá-las conforme a competência que julgo terem ou não.

UM NOVO MÉTODO

Numa troca de mensagens pelo Facebook, disseste-nos que consideravas este álbum superior ao “Cara d’Anjo”. Em que aspectos?
Na minha opinião, é superior. Não digo que não haja pessoas que não se identifiquem mais com algumas coisas que estão no álbum anterior ou que o álbum anterior não possa ser mais ao estilo de algumas pessoas. Mas quando eu digo que é superior estou a ser objetivo e factual. Todas as questões que envolvem a composição de uma canção, deste a letra, a métrica, os arranjos, foram tratadas aqui com muito mais competência. Claro que em termos estéticos e estilísticos as alterações podem ser mais ao gosto de uns do que de outros, mas isso já é uma questão de gosto. Acontece também que neste disco encontrei alguns sítios naturais que começam a definir um pouco melhor aquilo que eu acho que pode vir a ser o meu espaço enquanto cantautor.

No texto de apresentação do disco no Bandcamp, dizes que quiseste romper com o método de escrever canções que tinhas até então, método esse que começou a parecer-te demasiado “saturado” em ti próprio. Nesse aspecto, o que é que mudou de um álbum para o outro?
Eu sempre liguei muito mais à letra. Sempre foi essa a minha preocupação, tanto que quando eu comecei a fazer canções, há quase dez anos, a coisa que me dava mais ímpeto e mais me apelava era a letra. Antes de eu começar a fazer uma canção, podia até nem ter nenhuma ideia sobre a melodia ou a harmonia, mas já sabia o que queria dizer. Isto fez com que eu quase sempre escrevesse primeiro as letras. Nesse sentido, “Cara d’Anjo” é um álbum muito mais alinhavado. Neste, decidi simplesmente não pensar nisso. Não pensar em todas as questões que me tinham ocupado nos últimos anos e começar a compor canções de uma forma, digamos, mais livre, em que a letra aparece como acessório à música que já estava composta e não o contrário. E isso, como é óbvio, mudou muita coisa.

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Franscisco Aguiar D.R.

Como por exemplo?
Antes de tudo, só quando apontei as letras é que percebi a dificuldade que ia ter em arrumá-las de uma forma poética, tanto que cheguei mesmo a ponderar não arrumar os versos em quadras nem em estrofes. Estava a ter imensa dificuldade em perceber quando é que começava e quando é que acabava cada verso. Este novo método, no fundo, fez com que as canções não tivessem uma métrica tão rígida. “Luís Severo” acaba por ter um lado menos convencional do que o álbum anterior, sendo também, ao mesmo tempo, mais confuso a nível estrutural.

Foste então para estúdio sem ter uma única canção escrita?
Algumas letras já estavam escritas, mas fui fazendo alterações à medida que ia cantando. Como eu te disse, comecei por não apontar nada, a não ser algumas “punchlines”, como eu lhes chamo, que são aquelas frases mais se destacam, que agarram, como quando eu digo, por exemplo, “que a escola é a melhor parte da vida mas só porque a vida é mesmo uma merda” [em “Escola”, single do álbum]. Dou muita importância a estas frases-chave, que não são meramente abstratas ou descritivas. Tento sempre que cada canção tenho uma assim. Mas de resto fui sempre cantando de uma forma nova e alterando as letras. Tanto que quando o disco estava finalmente acabado, o Diogo [Diogo Rodrigues], com quem eu fiz este álbum, disse-me: “Olha, finalmente vou perceber como é que isto ficou”.

E deste-te bem com este novo método? Foi tudo fluindo naturalmente ou houve algum momento em que tenhas sentido a coisa mais perra?
Eu vi tudo com uma coisa só. E o que é bom é que isto fez-me entender que, no fundo, a voz é um instrumento que tem de ser visto como qualquer outro. É verdade que eu ia escrevendo as letras um bocado como me apetecia, mas no fundo eu já tinha as ideias todas. Já estava tudo na minha cabeça e eu só precisei de sintetizar tudo isso naquele objeto em específico. Quanto ao processo, e acho que a tua questão era mais por aí, posso dizer que tentei sempre a ver a coisa de uma forma relaxada. Foi intenso, estive a gravar durante muito tempo, mas não foi um sufoco, porque eu tive muito tempo para fazer cada coisa. Não fiz nada à pressa, nesse sentido. Houve tempo para alterar tudo. Houve algumas canções em que, imagina… a penúltima do disco, por exemplo, que é só piano e voz…

“Lamento”…
Exatamente. Essa canção chegou a ter um beat e chegou também a ter um baixo diferente. A dada altura, nós dizíamos por piada que parecia uma música do.. como é que se chama aquele gajo? Manu Chao. Isso. Depois decidimos ir por outro caminho, porque aquilo de facto estava um bocado foleiro. Houve mesmo tempo para tudo. É essa a coisa boa de estares numa sala em que não tens de pagar nada.

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Francisco Aguiar D.R.

 

UM NOVO ESTÚDIO

Foi por isso que decidiste mudar de estúdio?
Eu dividia um estúdio com o Sambado [Filipe Sambado] e outros amigos, onde ensaiavam também outras bandas. O espaço era minúsculo, para aí do tamanho deste café, se calhar menos. Aquilo era sufocante, não havia sol. Além disso, eu tinha lá o equipamento todo e também nesse aspecto era complicado. Não estava mesmo a sentir-me bem lá. Dava-me bem com as pessoas, mas sentia que precisava de ir para o outro sítio. O Diogo tem um estúdio em Alvalade e eu basicamente colei-me para ir para lá. Na altura, ainda não havia quaisquer planos de lançar o disco pela Cuca Monga, mas depois a malta da editora, e não só, acabou toda a tocar.

Qual foi a mais-valia de teres todas essas pessoas a contribuir para o disco?
Ouvidos frescos, ideias novas, ideias diferentes, outras estéticas. Basicamente foram essas as mais-valias. O coro [composto por Teresa Castro, Bia Diniz e Primeira Dama], por ter sido gravado todo ao mesmo tempo, deu um toque mais orgânico ao disco, que estava demasiado maquinal e sintetizado. Deu-lhe a vivacidade que faltava. Quanto aos violinos, fui eu que sugeri ao Tomás [Tomás Wallenstein, vocalista e guitarrista dos Capitão Fausto] que experimentasse sacar umas malhas no violino. Gosto muito de cantores folk americanos que usam violino e por isso sugeri-lhe isso. Foi um coisa que fomos fazendo aos poucos, porque aquilo leva tempo a apanhar. Todas estas pessoas que contribuíram para o álbum fizeram-no em diferentes alturas. De início, tive comigo só o Diogo e o Manel Palha [guitarrista dos Capitão Fausto], que são de facto os dois pilares deste disco, as duas torres.

UMA CIDADE

Em “Amor e Verdade”, há uns versos que dizem “Lisboa chora agora / não há filho teu que não te venda / fazem de ti boneca, à espera / que no fim ainda tenhas remenda”. O que remete imediatamente para questões como o turismo de massas na cidade e a gentrificação. Este álbum é também sobre isso?
Sim, isso é bastante óbvio. Essa frase, em específico, é uma coisa quase patriótica. É curioso que todas as pessoas que estão a vender e a transformar Lisboa são pessoas de cá, são filhos desta terra que decidiram, entre aspas, abandonar a cidade e fazer dela um espaço mais para quem vem de fora, para vê-la, do que para quem vive aqui. Eu próprio tenho uma casa de família que já ponderei pôr a alugar no Airbnb ou outra plataforma do género. Acho que todos as pessoas que se encontram nessa situação, isto é, que são proprietárias de casas, ou cujos pais são proprietários, já ponderaram fazer isso, mas a questão é: será que não há nenhum sentimento além disso? Lisboa continua a ser uma cidade fantástica, mas vai ficando pior. Por outro lado, também é evidente que essa frase – “Lisboa chora agora, não há filho teu que não te venda” – é meio populista e eu não tenho a intenção de converter ninguém nem de mudar opiniões. Eu toco em assuntos que são de uma natureza política, mas não de uma forma politizada. E para todos os efeitos essa frase é mais um simples desabafo do que uma tentativa de mudar a opinião de quem quer que seja.

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Francisco Aguiar D.R.

Quiseste falar sobre estas “alterações” que Lisboa tem vindo a sofrer porque elas afetaram ou afetam a tua vida ou porque estás simplesmente atento ao que se passa à tua volta?
Quis falar sobre isso porque me afeta. Quando aluguei esta casa onde estou há um ano, as rendas já estavam estupidamente altas. Tive a sorte de encontrar agora outro apartamento em condições óptimas e a um preço bem simpático. Sei que isto não importa para nada, mas basicamente andei de porta em porta, na Penha de França, a perguntar às pessoas se sabiam de casas para alugar. Tinha duas hipóteses: ou fazia isso ou ia procurar apartamentos na Internet. E procurar apartamentos na Internet é para esquecer, porque percebemos que as casas estão ao dobro do preço que estavam há um ano. É claro que isso me afeta, do mesmo modo que afeta toda a gente que vive cá. Também me incomoda que os espaços antigos estejam a fechar. Talvez seja só aquele sentimento à velho, porque um dia tudo fecha. Mas sim, incomoda-me um bocado.

Nasceste em Lisboa?
Eu sou de Odivelas e fiz o secundário em Odivelas, mas sempre passei muito tempo cá. Quando fui para a faculdade [Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa] já tinha imensos amigos aqui. Tenho uma avó que vive ali na Penha de França e sempre passei muito tempo em casa dela. Portanto, antes de viver efetivamente aqui, já me sentia lisboeta, já me sentia minimamente alfacinha.

Numa entrevista recente, dizes que ter tocado em tantas “terras”, durante a apresentação do álbum anterior, permitiu-te comparar Lisboa com outros sítios. A que conclusões é que chegaste?
Antes de mais, acho que Lisboa podia ser uma cidade mais solidária. Encontrei essa solidariedade, que não encontro aqui, em alguns sítios onde toquei. Estive muito na zona do Douro e do Minho. Braga, Guimarães, Monção, Fafe, Lamego. Porto, obviamente. Vila Real também. São sítios em que não só há público, como há uma atitude fixe, ao mesmo tempo que vai havendo muitos heróis que, mesmo não sendo a terra o sítio mais fácil para agendar concertos, continuam a querer levar bandas a tocar lá. Escrevi algumas letras do novo disco quando estava em digressão. Por isso é que a crítica que é feita a Lisboa, mas também os elogios, que são muitos, são feitos em comparação com esses outros lugares do país.

“NÃO QUIS FAZER UM DISCO QUE NINGUÉM PERCEBA. ISSO SERIA ARROGANTE DA MINHA PARTE”

Dizes que o novo disco “é talvez mais difícil de entrar do que o anterior”. Houve da tua parte, de facto, a intenção de fazer um álbum mais complexo e intrincado? Menos direto e óbvio? Ou é simplesmente uma análise que fazes à posteriori?
Sim, houve essa intenção. Tudo isto advém de um questão importante de que já aqui falámos indiretamente e que é a questão do segundo álbum. Lanças um primeiro disco que até corre bem, porque as pessoas gostam e falam sobre ele. O segundo disco, depois, vai ser apenas uma de duas coisas – ou confirmação de que tu, afinal, és uma merda ou a confirmação de que até vales alguma coisa. E isso, claro, traz alguma pressão. As pessoas começam a questionar-se: “Mas então o que é que ele vai fazer agora?” Quanto a mim, tentei encarar essa pressão sem grande preocupação. Sabia que não podia fazer um disco igual ao outro. Foi por isso que tentei ser mais intuitivo. A mudança de método também tem a ver com isto, porque veio fazer com que o disco não fosse tão fácil. Mas como é óbvio, não acordei e saí da cama a pensar: “Bom, agora quero fazer um disco que ninguém perceba”. Isso seria um bocado arrogante da minha parte. Simplesmente, não tive nenhum complexo em incluir canções que não seriam, à partida, singles óbvios.

Quais, por exemplo?
“Meu amor”, por exemplo. Até “Lamento”, que eu acho que não seria um single, se bem que já me têm dito que podia ser. No fundo, sinto que este disco explora um formato de canção diferente, um formato que eu ainda estou a tentar encontrar, a tentar perceber. Porque a verdade é que eu ando a dar entrevistas e a falar sobre um álbum que ainda não me sentei com calma a ouvir como se não tivesse sido eu a fazer. Nem eu sei bem tudo o que lá está.

Houve algum momento em que essa pressão de que falas se tenha tornado menos saudável?
Há sempre dias em que não estás tão confiante. Eu acabei o disco sem saber se ele estava bom.

E quando é que percebeste que estava?
Muito honestamente, só agora, que o tenho ouvido, é que começo a achar piada. A malta disse-me logo que estava muito bom, mas eu não acreditei. Tive uma, duas semanas, em que não conseguia ouvi-lo. Em que fiz mesmo questão de não o ouvir. Mas agora já consigo e acho que ficou fixe.

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Francisco Aguiar D.R.

UMA CASA

Falemos um pouco de ti. Dizes em algumas entrevistas que estudaste Sociologia como podias ter estudado outra coisa qualquer. Mas porquê esse curso?
Eu escolhi estudar Sociologia um bocado por cobardia, para não ter de assumir que o que eu queria mesmo era estudar música. E porque na verdade também tinha medo de estudar música. O meu encanto era tão grande que eu receava vir a perdê-lo. Fui para Sociologia como podia ter ido para outro curso qualquer daquela faculdade. Na fase final do curso, eu já estava a trabalhar como freelancer noutras coisas e estava sem tempo nenhum. Faltavam cinco ou seis cadeiras para terminar o curso. Estive quase para desistir, mas depois pensei que era estupidez não fazer isso e não encerrar aquele capítulo. Não é que eu pretendesse ser sociólogo, porque não pretendia nem pretendo, e mesmo que fosse seria um sociólogo péssimo, mas queria mesmo terminar aquilo. E terminei. Com uma média ridícula, mas terminei.

O que fazes então além da música?
Ultimamente, tenho podido estar só a fazer música. Tenho feito os meus discos, tenho composto para outros artistas, já fiz música para televisão. Vou aproveitando as coisas que vão aparecendo, na área do som, por exemplo. Já produzi algumas bandas também.

E consegues viver disso?
Sim, tenho conseguido. Não sou uma pessoa rica, mas tem sido suficiente e acho que, se tudo correr bem, há de começar a ser cada vez mais suficiente. A ideia, no fundo, é estares sempre ocupado a trabalhar e ires somando todas as migalhas que vão aparecendo, porque tudo somado dá quase sempre para ir pagando as contas.

Para que outros artistas já compuseste?
Já compus para a fadista Cristina Branco, por exemplo. Há agora aí outra coisa que em princípio vai acontecer, mas eu ainda não posso falar sobre isso. No geral, estou completamente receptivo a compor mais. É uma forma de estar a trabalhar, mas sem aparecer sempre. O que, diga-se, também me dá muito gozo. É uma chatice aparecer sempre, estar sempre a dar entrevistas. Nada contra ti, claro…

Mas porque é cansativo?
Porque é uma chatice. Eu sei que não se nota mas eu, apesar de tudo, tenho um lado um bocado mais tímido… Chego a casa, muitas vezes, e penso “Bfff, ok, quando é que isto acaba?” Compor para outras pessoas, que muitas vezes até interpretam melhor do que eu, possibilita-me ter obra, autoria, sem ter esse lado de exposição.

E as duas coisas sao conciliáveis? Não em termos de tempo, mas de dedicação, sabendo tu tão bem o que queres realmente fazer.
Eu já fiz música para anúncios de televisão e isso deu-me imenso gozo. A minha música e os outros trabalhos que eu vou fazendo são completamente diferentes. Neste disco de que temos estado aqui a falar, eu sou o cliente. O disco foi feito para me satisfazer a mim. Mas também me dá gozo fazer coisas em que o cliente é outra pessoa. Não me sinto nada mal com isso. Além disso, tenho sempre a possibilidade de escolher cada nota. Claro que se só fizesse isso, provavelmente não iria sentir-bem e iria sentir necessidade de fazer coisas também para mim. Mas ao mesmo tempo já me sinto abençoado por estar aqui a falar contigo e não ali, metido naquela confusão [aponta para a televisão do café, onde está a passar uma notícia sobre um caso de bullying em Odivelas, no noticiário das 20h].

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Francisco Aguiar D.R.

Falas sobre a tua mãe em várias entrevistas e do modo como ela “iniciou-te nos “trilhos da música”. Qual é a ligação dela à música?
A minha mãe sempre ouviu imensa música e viu imensos filmes. Apesar de eu ser de um subúrbio e de um bairro feios, numa zona feia, tive a sorte de ter uma casa em que havia muitos discos e livros e filmes que eu ia consumindo no meu tempo livre. Sufjan, Elliott Smith, Chico, Dilan… Eu tinha tudo isso em casa. Acho até que se não fosse o contacto com esse espólio, não teria sido possível eu fazer música ou ser, entre aspas, artista.

O que é a tua mãe faz?
É funcionária pública na área da Educação.

Da mesma forma que ela te mostrou isso, quem é que lho terá mostrado a ela?
Eu acho que o meu avô também tinha um bom gosto, mas a verdade é que a minha mãe investiga muito. Acompanhou aquela fase dos blogues, quando nós ainda éramos pequenos. Muitas das coisas que eu ouço, até coisas atuais, foi ela que me mostrou. Sufjan Stevens, Elliott Smith… Até mesmo Magnetic Fields, que é um banda que eu gosto imenso, foi ela que me deu a conhecer. Por causa disto, fiquei um bocado mãe nos meus gostos. Mas uma mãe fixe.

E o que é que ela acha desta tua vida de músico?
Acho que já estou a convencê-la.

Ainda estás nessa fase? Ainda não conseguiste convencê-la?
Talvez já tenha conseguido. Mas acho que no Teatro Ibérico ainda vou convencer mais. Na música, há um bocado aquele estigma, tal como há no futebol, de que em cinco milhões de pessoas só duas é que chegam lá. Por isso, quando eu comecei, eles estavam com algumas reservas. Mas não tenho razão de queixa. Eles sempre me apoiaram. E eu também nunca me encostei, tentei estar sempre ativo e eles reconhecem isso.

Foi a tua mãe que te mostrou a fadista Argentina Santos, de que falas em algumas entrevistas…
Eu gosto muito dela. Já a ouviste a cantar?

Não a conhecia até ter lido essas entrevistas em que falas nela. Depois estive a ver alguns vídeos no youtube.
É mesmo muito boa, não é? Não ficaste minimamente espantada?

Fiquei. Mas queria perceber o que mais te fascina nela.
Lembro-me de que, quando a ouvi pela primeira vez, fiquei completamente espantado. Senti que havia ali algo sobrenatural. É verdade que a Amália é a melhor e que toda a gente a considera a mais competente e a mais fantástica, mas a Argentina tem ali qualquer coisa de inexplicável que me cativou até mais. A Amália é a Amália e isso não pode ser negado, mas a Argentina, apesar de tudo, acaba por ser a minha fadista favorita.

Além de Cohen, que costumas referir sempre, que outros músicos ou bandas ouviste enquanto gravavas o disco?
Eu sou muito chato nisso. Digo sempre as mesmas coisas. Ouvi o Sufjan, Elliott Smith, Zeca, Cohen, Chico, Caetano, Jorge Ben. Ouvi e ouço imenso Bonnie ‘Prince’ Billy. Scout Niblett também. Acho que é isto. Não sou propriamente aquele gajo que vai dizer-te o nome de uma banda de que nunca tenhas ouvido falar.

Publicado no jornal Expresso a 30 de março de 2017.

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As inquietações da vida moderna deram lugar às ansiedades dos corações modernos

Com uma mão-cheia de álbuns na bagagem, os Parquet Courts são hoje uma das bandas mais interessantes de punk rock. Este ano lançaram “Human Performance”, que vem com uma das inquietações mais intemporais de sempre: “É uma coisa com a qual nós estamos coletivamente obcecados, o amor. É o denominador comum da música pop”.

Quem os viu no Primavera Sound deste ano, no Porto, sabe do que estamos a falar: quatro tipos insuspeitos que entram em palco com o mesmo ar inocente e curioso e que assim que se agarram às guitarras e à bateria e ao baixo deixam-nos de pés pregados no chão e o corpo em movimentos bizarros como se quisesse sumir sabe Deus para onde. São os riffs acelerados e frenéticos, as secções rítmicas inventivas e interessantes, tudo isso servindo de combustível para as pequenas explosões punk que se vão sucedendo e que tanto têm de selvagem como de domesticável. No fim, não haverá pontas por atar ou arestas por limar. Mas quem não os viu nesse ou noutros concertos também não ficará menos bem servido se se limitar a ouvir o novo disco do quarteto norte-americano, “Human Performance”, lançado este ano.

Perguntámos a Gonçalo Formiga, dos Cave Story, que os conhece bem e os reconhece como grande inspiração, o que mais gosta neles e a resposta chega assim: “Eles são uma banda de Nova Iorque e acolhem essa condição de forma exemplar. São eles próprios que o admitem quando dizem que ‘se existe uma tradição de bandas de Nova Iorque, gostamos de pensar que somos uma continuação disso’. Acho isso interessante”, diz o vocalista e guitarrista da banda das Caldas da Rainha.

Andrew Savage, Austin Brown, Sean Yeaton e Max Savage juntaram-se em 2010 e levam já uma mão-cheia de discos na bagagem. Lançaram o primeiro álbum em 2011, “American Specialties”, e um ano depois, com “Light Up Gold”, aquele primeiro burburinho que se havia gerado deu lugar a vozes sérias e robustas. Em 2014, já com todos os olhos postos neles, lançaram “Sunbathing Animal” e confirmaram-se como uma das bandas punk rock mais interessantes da atualidade. No mesmo ano, lançaram “Content Nausea” (apenas Andrew e Austin, ambos guitarristas e compositores, gravaram o álbum, enquanto Parkay Quarts) e em 2015 o quarteto voltou a juntar-se para gravar o EP “Monastic Living”.

“Human Performance”, lançado este ano, representa ao mesmo tempo um salto e uma continuação e aperfeiçoamento (e eles estão cada vez melhores) face aos álbuns anteriores. “Se até este disco os Parquet Courts eram uma banda que parecia estar no limite de qualquer coisa, agora tudo é mais claro”, diz Gonçalo Formiga, comparando o álbum anterior, “Monastic Living” – que descreve como um “manifesto sobre o isolamento e a solidão, um álbum instrumental de uma banda que até aí tinha posto as letras das músicas em primeiro plano – com este “Human Performance”, que representa, na sua opinião, “o culminar das suas habilidades na escrita de canções”. “As inquietações da vida moderna, que eram centrais nos discos anteriores, deram lugar às ansiedades dos corações modernos.” Se musicalmente “existe experimentação criativa, com imensa reverberação e eco para uma banda que sempre se declarou anti-reverb”, nas letras “há muito mais experimentação pessoal, sente-se o peso das perguntas”, aponta o músico português, dando como exemplo os versos da distinta “Berlin Got Blurry”: “Telling pretty stories, is it your sole purpose? Telling everybody that you’ve learned your lesson”.

Numa entrevista recente à revista “Spin”, Austin Brown fala sobre estas mudanças e diferenças entre álbuns: “Antes, eu tinha tendência para escrever letras muito obscuras, como se erigisse ali uma barreira para que ninguém percebesse o que eu estava a querer dizer. Mas desta vez não, não quis usar esse ‘truque’. Procurei sempre dizer as coisas da forma mais clara e menos obscura possível”. O tema “Steady on My Mind”, que aparece ali mais ou menos a meio do álbum, acaba por ser o melhor exemplo disso. “Quando eu escrevi a letra dessa canção já sabia que ia ser uma canção de amor. Para mim, negar isso seria negar a sua própria existência.”

Where could I start?”
Those are the words I write
A late sentiment a bit misplaced
But that comes as no surprise
At a loss, I’m overwhelmed
Like my memory over time
Just remember that I’ll keep you in
A place that I can find
Steady on my mind

“Antes havia uma barreira”, reforça Austin Brown. “Quando queria escrever canções desse género, optava sempre por um registo menos comprometido, meio blasé e arrogante. É muito mais confortável fazer isso do que simplesmente admitir que as coisas são o que são. Mas tenho orgulho em ter conseguido fazer isto desta vez.”

Wherever you may stay
That’s where I’ll return
I’ve never felt committed to much
But that don’t mean that I can’t learn
To dedicate and reciprocate
What you send my way
And I promise that I’ll say “hello”
As often as “goodbye”
Steady on my mind

“E eu prometo dizer-te tantas vezes ‘olá’ quanto ‘adeus’”. Já Andrew Savage, quando questionado pelo jornalista da “Spin” sobre as outras “estruturas” sobre as quais gosta de escrever, além das “estruturas que nos aprisionam e face às quais nós somos mais ou menos impotentes”, respondeu o “amor” e explicou: “Estar apaixonado por alguém, as emoções humanas… Tentámos ao máximo não estar preocupados ou obcecados com estes sentimentos, mas eles na verdade controlam-nos. Todos nós temos uma predisposição para amar – às vezes isso é bom e outras vezes é mau. É uma coisa com a qual nós estamos coletivamente obcecados, o amor. É o denominador comum da música pop”.

Mas nem só de amor se faz este álbum. O leque de temas é tão abrangente quanto é abrangente em sentimentos e experiências qualquer performance humana, afetando e deixando-se afetar por lugares – e o deles, norte-americanos nascidos no Texas, é a cidade de Nova Iorque, Brooklyn, a cidade de “Dust”, do ruído e do pó que entra pela janela e pelo chão e pelo telhado e pela porta e por todo o lado, “está em todo o lado” – e pelo tempo – e o deles, apesar de influenciados por bandas como os Velvet Underground e Feelies e de serem muitas vezes comparados com os Pavement, é claramente o tempo de agora, agora.

Artigo publicado no jornal Expresso a 21 de dezembro de 2016.