Em busca da perfeição num passo de dança

Featured image

Tiago Miranda/Jornal Expresso

“E vai um e dois e três e quatro, e depois cinco e seis e sete e oito. E vai à frente, atrás, à frente, atrás, e ficou… e ficou… e ficou”. A professora explica a próxima sequência de movimentos, ao mesmo tempo que mostra como se faz. Recua a passos largos e avança e volta a recuar. Faz também algumas correções. Fala alto, mas não é agressiva. É o seu jeito, pensamos aqui para os nossos botões. As alunas, dispostas em “u”, não a largam, seguem-na com os olhos pregados em cada gesto que faz. Imitam-na para conseguir memorizar os movimentos que terão de fazer quando o piano voltar a ouvir-se. “E vai à frente, atrás, à frente, atrás”. Há quem bata palmas para marcar o ritmo. Ao fundo da sala, semi-escondida atrás de uma fila de braços nus caídos e pernas vestidas de branco, Teresa, muito quieta, prefere ouvir, como se estivesse tudo a acontecer, mas lá dentro. Como consegue manter-se assim, estranhamente imóvel, como estátua, sem imitar, apenas ouvir, muito atenta – ela, que há de dar a entender que só a dança a deixa feliz – não sabemos. Como não sabemos, nem viremos a saber, muitas outras coisas. Este mundo não é o nosso.

Teresa Dias, 18 anos, entrou para a Escola de Dança do Conservatório Nacional (EDCN) em 2007. Tinha 10 anos. Gostava de dança, sabia dançar (frequentara uma escola na freguesia de Campolide, também em Lisboa), mas queria aprender mais. Lembra-se de dizer à mãe que queria vir para cá porque conhecia algumas pessoas. E lembra-se de ouvi-la responder que sim, que concordava, que podia ir. No meio disto tudo, talvez tenha dito também “tudo bem, vai”, mas Teresa não tem a certeza. Pouco tempo depois participou numa audição para admissão de novos alunos e foi aceite na escola.

Quatro anos depois, chegou Miguel Pinheiro, caído de “pára-quedas”, como costuma dizer. Vinha da ginástica artística de competição e não sabia absolutamente nada sobre dança –  tanto tecnicamente, como enquanto arte. Talvez já tivesse assistido a um bailado, mas não mais do que isso. Na verdade, a ideia de se inscrever na EDCN foi a mãe que a teve. Miguel prefere chamar-lhe “proposta”, e não vai abdicar do termo até ao fim da entrevista. Lembra-se de ouvi-la dizer que a ginástica não era “suficiente” e que ele “merecia experimentar outra coisa mais artística, com mais significado” do que a ginástica, que o ajudasse a desenvolver “o lado emocional”.

Quando a mãe entrou em contacto pela primeira vez com um responsável da escola para falar sobre o seu filho que não sabia dançar nem sabia absolutamente nada sobre dança, mas queria muito aprender, disseram-lhe que era “absolutamente impensável”, que não aceitavam alunos no terceiro ano sem formação e conhecimentos. As audições foram um desastre, uma “vergonha”, não podiam ter corrido pior. Teve de admitir que não sabia dançar, fez o que sabia, fez pouco, mas ainda assim foi aceite, vá-se lá saber como.

A maioria dos alunos entra para a EDCN aos 6 anos. Miguel já tinha 13. Entrar assim, meio à toa, numa turma de meninos-prodígio, foi um “desafio”. Porque teve de trabalhar o dobro ou o triplo – ou ainda mais – do que os outros (aulas de apoio, à hora de almoço, com um professor que lhe dizia que aquela pirueta que acabara de fazer no ensaio ou a perna a 175º que via os colegas de turma levantar tinham, afinal, outros nomes, nomes específicos, que só quem está dentro, quem dança assim, é que sabe). Porque teve de se habituar a uma escola sem recreio, sem rapazes a jogar à bola, sem espaços para correr e fazer “trinta por uma linha”. Sem cestos de basquetebol e mesas de pingue-pongue, com corredores e salas e estúdios onde só se via raparigas. E porque foi obrigado a descobrir esse velho ditame que cresce nas ruas que diz que a dança é para as raparigas e não para os rapazes. Mas o esforço não foi só dele. Os colegas de turma mostravam-lhe vídeos de dança e levavam-no a ver espetáculos e os ensaios dos mais velhos nos estúdios da escola.

Hamburgo e Haia. Portugal fica para mais tarde
Miguel, agora com 17 anos, é um dos bailarinos da sua divisão mais premiados em Portugal. Ganhou a medalha de ouro no concurso “Semana Internacional de Bailado do Porto”, em 2013, e o 1º prémio nas semifinais do Youth America Grand Prix (maior concurso internacional para jovens bailarinos). Em fevereiro deste ano, foi distinguido no Prix de Lausanne, na Suíça, na categoria de dança contemporânea. Teresa e outros três alunos da escola também participaram no concurso, um dos mais importantes a nível internacional.

Sobre o ambiente da prova, Miguel diz que “não era assim tão competitivo”. Pelo menos se comparado com o de outros concursos em que participou. Lembra-se de um em particular, que decorreu na Rússia: grande parte dos concorrentes eram mais velhos e havia momentos, muitos, em que lhe lançavam “um olhar de cima”, com o peito esticado, como quem diz – “estás feito”.

Este foi o último ano de Miguel e Teresa na EDCN. Partem no início do próximo ano letivo para o estrangeiro. Teresa viaja para Hamburgo (Alemanha) com um contrato de dois anos para trabalhar na companhia de dança júnior da Hamburg Ballet, e Miguel para Haia, na Holanda, onde vai trabalhar pelo menos durante um ano na Nederlands Dans Theater. Ficar em Portugal chegou a ser uma hipótese para ambos. “Portugal não é menor e continuar cá é uma opção com imenso valor. Não tenho aquela ideia de que tudo o que há lá fora é que é bom”, diz Miguel. “Se vou para o estrangeiro é em busca de uma oportunidade mais segura, menos precária, do que aquela que há aqui”. Teresa concorda, e sublinha o facto de haver poucas companhias de dança clássica no país. Apesar disso, querem voltar a Portugal, talvez daqui a alguns anos, talvez para ensinar o que aprenderam em Hamburgo e em Haia ou noutra cidade qualquer.

Antes de partirem, Teresa, Miguel e os restantes colegas actuam uma última vez juntos no espectáculo final da Escola de Dança do Conservatório Nacional, onde vão dançar “La Ventana”, um bailado de August Bournonville, remontado por Frank Andersen e Eva Kloborg. As exibições são esta sexta, sábado e domingo, no Teatro Camões, no Parque das Nações, em Lisboa. O Expresso acompanhou a primeira noite de exibição.

Jornal Expresso, 4-07-2015 (com Tiago Miranda, fotografia, e João Santos Duarte, vídeo). Reportagem aqui.