Quase sempre em grande forma

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Na entrevista ao semanário Sol, Luiz Pacheco, que vivia na altura num lar, o terceiro por onde passava, conversa com Ribardo Nabais e Vladimiro Nunes a respeito de um livro com entrevistas suas que estaria para sair. “Esse livro é uma merda! Isso é uma aldrabice. É bom para andar por essas pequenas editoras”. Esse livro, intitulado O Crocodilo que Voa, nome de um desenho de Cruzeiro Seixas, poeta e figura importante do surrealismo português, e título de uma revista que Luiz Pacheco planeara em tempos fazer, seria publicado em 2007, pela editora Tinta-da-China. O livro, agora reeditado pela mesma editora, reúne entrevistas feitas por Carlos Quevedo e Rui Zink, Baptista-Bastos, Mário Santos, João Paulo Cotrim, Paula Moura Pinheiro, Rodrigues da Silva e Ricardo de Araújo Pereira, João Pedro George, Pedro Castro, Pedro Dias de Almeida, Ricardo Nabais e Vladimiro Nunes.

No prefácio, João Pedro George, responsável pela organização e seleção, com Luiz Pacheco, das entrevistas, e autor de uma biografia sobre o escritor, Puta que os Pariu! (Tinta-da-China, 2011), escreve que a atenção da imprensa a Luiz Pacheco nem sempre se deu pelas “melhores razões”, porque o que interessava aos jornalistas era captar “o seu lado pitoresco ou castiço, como nos fenómenos de feira”. Assim, quando o visitavam, nos quartos ou nos lares onde viveu, era óbvio que “iam à cata do mexerico, da inconfidência, da intriga”. Era óbvio que o que queriam mesmo era apanhá-lo em grande forma. E, reconheça-se, quanto a entrevistas, Luiz Pacheco esteve quase sempre em grande forma. Como escreve João Pedro George, “não foi nenhum desmancha-prazeres, e raramente os jornalistas voltavam para as redações de mãos vazias”. Sem precisarem de se esforçar muito (salvo algumas excepções).

Nas entrevistas aqui reunidas, publicadas originalmente em jornais e revistas entre 1992 e 2008, há exemplos claros disso: entrevistas em que a única coisa realmente importante para o entrevistador é saber quais são os “inimigos” de Luiz Pacheco, “os cinco prosadores” que detesta, o “pior político português”, se já teve vontade de matar alguém, o “lugar mais esquisito” onde fez amor, (entrevista de Baptista-Bastos, publicado no jornal O Inimigo, em abril de 1994), e entrevistas em que se procura, com subtileza mal disfarçada, expor certas incoerências do escritor, e saber o que é feito dos seus filhos (oito) e das mães dos seus filhos (três), e se eles, os filhos, o visitam e por que razão não o visitam, se será por “comodismo”, se por outra razão qualquer, como se se pretendesse chegar a uma conclusão extraordinária, como se isso fosse importante, ou o mais importante (entrevista de Paula Moura Pinheiro, , julho de 1996).

Mas há, também, exemplos menos claros disso, exemplos de outras entrevistas, boas entrevistas, em que são abordados outros assuntos: a infância de Luiz Pacheco, a família, a casa onde nasceu e viveu mais de vinte anos (que ficava ao cimo da Rua Dona Estefânia, em Lisboa, e tinha “muita gente” e muitos “relógios”, um na casa de jantar e outro na cozinha, pois “toda a casa funcionava com os relógios”), as primeiras leituras, os tempos no Liceu Camões (onde conheceu José Cardoso Pires e Jaime Salazar Sampaio), a passagem pela Faculdade de Letras (onde passou um ano como “aluno-fantasma” porque o pai lhe dissera que não tinha dinheiro para pagar os estudos, e os seguintes como aluno inscrito no curso de Filologia Românica porque se submetera a um exame de admissão que o declarara isento do pagamento de propinas), o emprego na Inspecção Geral dos Espectáculos que o pai lhe arranjara, as primeiras colaborações em jornais, as prisões, as raparigas, as raparigas e as prisões, as primeiras atividades editoriais, que serviam para “chatear a PIDE, o Salazar e a Igreja”, e davam, “além de muitas rédeas e muitas baias, uma excitação brutal de adrenalina”, a revista Bloco, o surrealismo (que era mais “coerente do que o neo-realismo” e passava mais despercebido à polícia, que julgava que aquilo era coisa de “malucos, de bêbados ou de paneleiros”), a editora e distribuidora Contraponto, que fundou em 1950 e publicou obras de Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Vergílio Ferreira, Herberto Helder e Natália Correia, bem como traduções de textos de Ibsen, Molière, Pirandello, Ionesco, Tchékhov, Voltaire, entre outros, o texto O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, “escrito de jacto, sem emendas, em meia hora, numa hora, enquanto estava à espera do almoço, depois de uma noite de grande bebedeira”, e publicado em 1970, a discussão em torno da definição de libertino (que Pacheco definia pela negativa, dizendo que a libertinagem não era o medo, não era a devassidão, não era a tristeza, e que o libertino era aquele que fazia da sua vida “um espectáculo”, Comunidade (que escreveu para mostrar que “era possível a felicidade com as condições materiais mínimas”, e que muitos consideram a sua melhor obra, publicada em 1964), o 25 de abril (em que foi de pijama para o Largo de Carmo, “mas não de propósito”) a filiação no Partido Comunista Português, a vida nos lares, etc. A lista é longa.

Na entrevista conduzida por João Pedro George, publicada originalmente em maio de 2005, Luiz Pacheco conta a célebre história do “plágio” de Fernando Namora, que roubara alegadamente partes do romance de Vergílio Ferreira, Aparição, para usar em Domingo à Tarde. Luiz Pacheco passou semanas, “ou talvez mais, um mês ou dois” na Biblioteca Nacional de Portugal a comparar os dois livros e a tirar anotações, que viria a publicar e a divulgar em folheto, apesar de alguns amigos, como Dinis Machado, o terem tentado convencer a não o fazer. Como escreve João Pedro George no prefácio, Luiz Pacheco era assim, “um tipo singularmente divertido, um trocista desbragado, com um desplante e uma sem-cerimónia invulgares”.

De Cesariny tanto dizia bem como mal (como fazia, de resto, com quase todos os escritores), tanto dizia que era “um tipo extremamente dotado”, “muito mais rico e polifacetado” do que o próprio Luiz Pacheco, como dizia que ele não tinha “carácter nenhum”. Noutra entrevista (publicada originalmente na revista Visão, em 2005) dizia que tinha ficado contente com a atribuição do Nobel a José Saramago, apesar de Saramago “não ser um grande escritor”, e de o Nobel não ser um prémio literário, mas um prémio de “carreira”, que premeia uma obra “com aspirações sociais”. Sobre José Cardoso Pires, dizia que ele “emborcava três garrafas de whisky de cada vez que o Saramago ganhava um prémio”, que tinha um “espírito de aldrabice”, mas que era “muito trabalhador, muito autocrítico, muito consciente”. E sobre Natália Correia, que não lhe haveria de perdoar o desplante, dissera que era “uma maluca, uma degenerada”, que só arranjava “velhos com massa”. Como dizia alguém: “Enfim… É o Luiz Pacheco”.

Luiz Pacheco morreu no dia 5 de janeiro de 2008. Numa das últimas entrevistas publicadas neste volume, Pedro Costa (A Capital), pergunta-lhe se valeu a pena, ao que ele responde: “Se valeu a pena?!… O que é que eu posso dizer a isso?… Foi como foi”.

Orgia Literária, 7-02-2015