Não, matarás

O principal mandamento de Rodrigo Duterte, Presidente das Filipinas, um dos países mais católicos do mundo, encoraja os cidadãos a matar traficantes e consumidores de droga. Já há milhares de vítimas

Ana França e Helena Bento

Era sexta-feira e Yani Jebulan estava num bar com os amigos. Mais um desses inúmeros botecos perdidos ao longo das estradas de terra batida do Sudeste Asiático — em vez de um telhado, duas placas de zinco amolgado. A iluminação, forte mas intermitente, vem de lâmpadas longas e cilíndricas. Não estão presas, balouçam. Vende-se cerveja, mas também gasolina metida em garrafas de água de litro e meio, doces e cigarros avulso. O bar ficava a menos de um quilómetro de casa, em Antipolo, uma pequena cidade a cerca de 30 quilómetros a este de Manila, capital das Filipinas. Yani tinha combinado sair para celebrar o final do semestre, que lhe tinha corrido especialmente bem. Estava no terceiro ano de Psicologia, na Our Lady of Fatima University.

À saída, ele e os amigos foram abordados por dois homens que se aproximaram de motorizada. Usavam boinas como as dos militares. O resto da descrição esbate-se na velocidade com que tudo aconteceu. Em poucos segundos, Yani estava estendido no chão, com o sangue a escorrer-lhe em fios pelos cabelos. Já não respirava. Levou quatro tiros: dois atingiram-lhe o peito, um o lado esquerdo do corpo, outro a cabeça.

Um outro rapaz também foi atingido. Levou dois tiros no pescoço, mas conseguiu sobreviver. As horas que se seguiram foram de aflição e de incompreensão, contou ao Expresso Alfredo Jebulan, pai da vítima, no dia do funeral do filho. A primeira suspeita foi de que Yani tivesse sido assassinado devido a ligações ao tráfico de droga. Mais uma das cerca de três mil vítimas que caíram às mãos da guerra impiedosa contra a droga lançada por Rodrigo Duterte, que tomou posse como Presidente das Filipinas em junho deste ano.

Mas Alfredo Jebulan, militar e depois polícia, agora reformado, não acredita que o filho tenha sido assassinado por isso. “O meu filho estudava numa escola católica, privada, com critérios de admissão muito rigorosos. Nunca teria sido aceite se existissem suspeitas de que estaria envolvido no consumo ou tráfico de droga.” Alfredo diz que ele mesmo, enquanto ex-militar, nunca iria “tolerar” que um membro da sua família “fizesse uma coisa dessas”. “Os meus filhos e as minhas filhas foram educados segundo princípios muito tradicionais. Se eu soubesse que o Yani estava envolvido em alguma atividade suspeita, eu próprio tê-lo-ia posto na cadeia.”

Alfredo tem a certeza de que a origem do ataque esteve numa disputa antiga entre um dos suspeitos e o seu filho. “Ciúmes”, diz. Ciúmes de quê ou de quem? Ou desconhece a resposta ou não a quis revelar. Desvaloriza a hipótese de ligação a gangues ou a tráfico, mas, diz, o seu filho “nunca teria sido assassinado se a situação do país fosse outra, se a polícia dedicasse mais esforços a procurar e a julgar os autores destas mortes inexplicáveis”.

Os atacantes, acredita Alfredo Jebulan, aproveitaram esta maré de homicídios para “justificar” o assassínio do seu filho, mas “definitivamente” não culpa Duterte pelo sucedido. “Eu compreendo as motivações do Presidente e a sua guerra contra a droga no país. Ele acredita que só assim será capaz de salvar a próxima geração de filipinos”, diz o pai de Yani. A única coisa que espera é que a justiça seja feita pelos corredores oficiais, para ele não ter de fazê-la “pelas próprias mãos”.

OUTRA MORTE POR EXPLICAR

Rick também morreu sem razão aparente. Tinha 45 anos e quatro filhos. Foi morto numa noite de agosto, quando se ausentou de casa para verificar um poste de eletricidade, de que era técnico de reparações. O irmão, Richard, que não quer dar o nome de família, diz que o que lhe contaram sobre o ataque o deixou “revoltado e em pânico”: “Quatro homens em cima de três motos acercaram-se dele e abriram fogo sem parar.” Os médicos legistas encontraram 11 balas no corpo de Rick. Em tempos, circulara no bairro uma lista fotocopiada com os “procurados” — e o nome de Rick estava lá. “Ele já tinha consumido drogas, mas deixou assim que soube que o seu nome constava dessa lista. Tudo bem, as drogas devem ser erradicadas, mas matar pessoas não lhes dá a possibilidade de mudarem. E o meu irmão estava a mudar.”

Durante a campanha eleitoral, Duterte prometeu que iria erradicar as drogas do país. “Todos vocês que andam metidos na droga, seus filhos da mãe, eu vou matar-vos”, disse em abril, um mês antes de ser eleito. Já em maio, num comício, afirmou: “Não irei parar até que o último traficante, até que o último barão da droga esteja ou atrás das grades ou debaixo do solo, se assim quiserem.” À população prometeu que ofereceria medalhas e prémios em dinheiro por cada traficante assassinado, e à polícia, em julho, garantiu proteção caso, “no decorrer do seu trabalho, tiverem de matar um milhar de pessoas”. Também num comício de campanha, numa das suas mais violentas tiradas, pediu ao público: “Se conhecem toxicodependentes, ide vós mesmos matá-los, porque pedir às suas famílias para o fazer seria demasiado doloroso.”

As estatísticas não são consensuais. Em outubro, a polícia filipina reviu em baixa os seus próprios números: de 3600 para 2300 mortes, mas ativistas e meios de comunicação, locais e internacionais, falam em números mais perto das 4000 vítimas. Quem são? São traficantes, alegados traficantes, uns toxicodependentes, outros suspeitos, e familiares de uns e de outros; são inocentes apanhados no fogo cruzado, como Danica Garcia, um menina de 5 anos, que morreu com um bala destinada ao seu avô.

Uma jornalista filipina que tem acompanhado diariamente os assassínios, tanto para a “Esquire” como para a “Rappler”, e que pede para não ser identificada, lembra ao Expresso uma noite particularmente negra. Entre o anoitecer e o nascer do dia 21 de outubro morreram pelo menos 12 pessoas, duas das quais foram assassinadas no mesmo local, com poucas horas de intervalo. “Nessa noite, houve pelo menos duas pessoas mortas no mesmo sítio, em frente à mesma loja de conveniência. O segundo atacante, dizem os empregados da loja, colocou sobre o corpo do homem que matara um papel a dizer ‘traficante’ e afastou-se do local a caminhar… repito, a caminhar, até ao fim da rua. Dobrou a esquina e desapareceu.”

Nessa noite, o som das ambulâncias, que em Manila nunca cessa por completo, não deixou a cidade dormir. Havia gente às janelas, pessoas a chegar de bicicleta aos locais dos crimes, alguns deles a pouca distância uns dos outros. “As famílias estão aterrorizadas. As que não perderam ninguém pensam que o mesmo pode acontecer aos seus filhos. Outras pensam se irão perder mais alguém, mas nem todos culpam Duterte. As pessoas imploram o fim desta violência, mas usam bonés e pulseiras de plástico de apoio a Duterte enquanto choram os seus mortos.”

A aparente apatia das autoridades cria as condições ideais para uma espécie de autorregulação do submundo — e há quem pareça acreditar neste método como a única forma de dissuadir potenciais criminosos. É o caso de Des Phalao, de 30 anos, que trabalha no Departamento de Relações Públicas do Citi Bank, em Manila, e cresceu em Tondo, um dos bairros mais violentos da capital. “Os criminosos não têm medo do Governo, e é isso que o Presidente está a tentar mudar.” Toda a sua família votou em Duterte, mas para Des a escolha foi pessoal. “No meu terceiro ano do secundário, fui atacada por traficantes de droga. Cortaram-me o braço com uma navalha. Tenho uma cicatriz de dez centímetros. Agarraram-me por trás, roubaram-me o dinheiro todo da mesada e o telemóvel e agrediram-me. Bati com a cabeça no passeio e fiquei inconsciente. Para eles não houve consequências. Mas eu continuo traumatizada com o que aconteceu. Fiquei no chão, com a cabeça rachada, a perder sangue. Duterte não os perdoaria, e é por isso que o apoio.”

CRESCER NO MEIO DO CAOS

Durante muito tempo, Davao foi considerada a cidade mais perigosa do país. Situada no sul da ilha de Mindanau, a segunda maior do enorme arquipélago de 7000 ilhas que formam as Filipinas, a cidade vivia envolvida numa atmosfera de medo, suspeição e violência — legado de anos de tráfico de droga via Indonésia, Malásia e Vietname, lutas entre minorias étnicas e conflitos entre o Governo e a insurgência comunista do final dos anos 60.

Sheila Coronel, diretora do programa de jornalismo de investigação da Columbia Graduate School of Journalism, em Nova Iorque, visitou a cidade no final dos anos 80 e recorda a experiência num artigo para a “Atlantic”. “Havia checkpoints nas ruas guardados por militares nervosos com as suas metralhadoras em riste. O que não impediu que continuassem a circular pela cidade homens armados e não identificados que atacavam tanto criminosos como agentes da polícia, muitas vezes à luz do dia.” Um residente na cidade contou a Sheila que, “todos os dias, pelo menos duas ou três pessoas eram assassinadas e atiradas para valas.” A isso somavam-se problemas gravíssimos de pobreza e desigualdade.

Em Davao, o “People’s Power”, lema dos que se opunham à ditadura de Ferdinand Marcos no final dos anos 80, assumiu outros contornos. Passou a ser entendido com uma espécie de cheque em branco que permitia às pessoas protegerem as instituições do Estado e matar os inimigos por ele designados. Um microclima propício ao aparecimento dos infames “esquadrões da morte”, grupos que muitas vezes se autorrotulam de justiceiros para travar o crime nas cidades onde atuam, com a desculpa de que não se pode esperar pela ação da polícia ou dos tribunais — uma espécie de outsourcing das funções legais e judiciais do Estado, esvaziadas em tempos de revolta.

DA REBELDIA À CÂMARA

Rodrigo Duterte nasceu na cidade de Davao, em 1945, no seio de uma dinastia de líderes locais. É o segundo de cinco filhos. O seu pai, Vicente Duterte, é ainda parente de Ramon Durano, que tinha sido um dos principais aliados de Ferdinand Marcos na província de Cebu. Rodrigo Duterte sempre foi um rebelde. Numa entrevista à revista norte-americana “New Yorker”, a sua irmã mais nova, Jocelyn Duterte, conta que ele era fascinado pelos guarda-costas da família e que não havia dia em que não andasse atrás dos polícias e dos militares que visitavam a casa. Gostava de motos, de armas e de meter-se com raparigas. Na mesma entrevista, Jocelyn conta também que tanto a mãe, Soledad Duterte, como o pai eram muito severos. Apesar de ter dedicado a sua vida ao ensino e à luta pelos direitos das minorias de Davao e ter-se tornado uma das maiores influências das políticas sociais do filho, Soledad castigava-o muitas vezes, obrigando-o a cair sobre os joelhos e a rezar durante horas. Quando Rodrigo chegava tarde, já não entrava em casa.

Duterte demorou sete anos a completar o secundário e dividiu os estudos por três escolas, tendo sido expulso das duas primeiras por mau comportamento. Educado num dos países mais católicos do mundo (mais de 80% da população diz professar essa religião, segundo os últimos censos), Duterte não se coíbe de criticar nem as instituições católicas nem o próprio Papa. Numa entrevista à Al Jazeera, disse que parte do seu empenho na luta contra o crime advém de ter sido “molestado por um padre quando era adolescente”.

Em 1972, Duterte conclui a licenciatura em Direito e, apesar da sua ligação ao Partido Comunista, aceita o emprego de procurador em Davao, herdando centenas de processos dos dissidentes presos na era de Marcos. Reconhecendo a luta de Soledad Duterte pela inclusão social em Davao, Corazón Aquino — que tomou o lugar de Presidente depois de o seu marido, Benigno Aquino, figura central da oposição à ditadura, ter sido assassinado — pediu-lhe que se candidatasse à Câmara da cidade. Soledad decidiu, no entanto, nomear o seu filho.

DUTERTE, “THE PUNISHER”

Então como agora — e esse é um dos segredos do seu sucesso —, Duterte movimentava-se nas águas internacionais da política filipina: os homens saudosos do regime de Marcos viam-no como o necessário punho de ferro e a esquerda anti-imperialista lembrava-se ainda do tempo em que Duterte figurava nas suas listas. Hoje, alguns dos seus maiores aliados são importantes homens de negócios, mas o eleitorado não o vê como um fantoche das elites.

Em 1988, Duterte chega finalmente a presidente da Câmara e aí permanece quase um quarto de século, interrompendo o tour de force durante quatro anos, já que não podia candidatar-se logo de seguida. Foi aí que concorreu para a Câmara dos Representantes em Manila, experiência que descreveu como “uma seca”. Em 2001, volta a Davao e volta a ser eleito como presidente da Câmara. Repete o feito em 2004 e em 2007. Hoje, os Duterte dominam a política local. A sua filha, Sara, passou para o leme. O filho mais velho, Paolo, é vice-mayor. E o irmão mais novo, Benjamin, é membro da assembleia local.

Patmei Ruivivar foi chefe do gabinete de pessoal de Duterte em Davao durante sete anos. Obcecado com detalhes, temperamental, asneirento e exigente são adjetivos que aparecem lado a lado com paciente, preocupado e altruísta num texto que escreveu no seu blogue quando o Duterte que conhecia desde adolescente saltou da cidade de Davao para as cadeias de televisão internacionais, nem sempre pelas melhores razões. “As pessoas assumem que há uma diferença entre o Duterte em público e o Duterte em privado. Ao primeiro contacto pode até ser um homem repulsivo, ofensivo, mas é um homem fácil de entender, porque os seus princípios são claros: ele quer mais justiça e mais igualdade entre os filipinos. Podemos discordar dos seus métodos, mas ninguém que o conheça tem dúvidas sobre aquilo que o move.” Foi em Davao que Duterte recebeu a sua alcunha: “The Punisher” (“O Punidor”), pela forma intransigente com que tratava os crimes relacionados com o tráfico de droga. Nunca se opôs, pelo menos publicamente, aos esquadrões da morte, e há suspeitas de que ele mesmo tenha participado em algumas “rondas”.

Quando, em agosto deste ano, o Senado começou a investigar o aumento dos homicídios extrajudiciais, a acusação convocou Edgar Matobato como testemunha principal. A história podia figurar no director’s cut de “Cães Danados”. Com um ar alucinado, cabelo grisalho e indumentária desleixada, Matobato contou que esses esquadrões recebiam ordens diretamente de Duterte e que se livravam dos corpos atirando alguns cadáveres aos crocodilos e outros ao rio que atravessa a cidade. Matobato implicou Duterte no assassínio de mil pessoas, mas acabou por ser afastado como testemunha por suspeita de posse ilegal de armas de fogo.

Tom Smith, especialista em violência política e Jihad no Sudeste Asiático e ex-professor na Universidade De La Salle, em Manila, diz ao Expresso que “aqueles que ousam falar contra Duterte e contra as suas políticas são muitas vezes perseguidos e ameaçados”. Phelim Kine, vice-presidente da divisão asiática da Human Rights Watch, diz-nos também que é precisamente o medo de eventuais represálias que faz com que tantos grupos, “mesmo aqueles de quem se esperavam grandes protestos”, se calem face às perseguições e mortes. “As pessoas temem ser elas próprias incluídas em listas de alegados toxicodependentes e traficantes se protestarem contra as políticas de Duterte. Os filipinos aprenderam bem a lição ao verem o que aconteceu à senadora Leila de Lima”, afirma.

Procuradora encarregada de conduzir a investigação no Senado contra Duterte, Leila de Lima foi entretanto afastada do processo por suspeitas de ter recebido luvas de traficantes de droga. Quando foi eleito, Duterte deixou-lhe o aviso: “Não comeces uma luta comigo, porque vais perder.” Numa das poucas entrevistas que deu — as ameaças a ela e à sua família forçaram-na a mudar de casa e a manter-se o mais longe possível da atenção do público —, Leila de Lima disse à “Foreign Policy”, quando questionada sobre a possibilidade de as ações do Presidente poderem vir a ser julgadas no Tribunal Penal Internacional (TPI), que acreditava que “muitas destas mortes extrajudiciais são perpetradas pela polícia ou com a sua conivência” e que, “se não são patrocinadas pelo Estado, pelo menos são inspiradas nele”. “Se isto for provado, então a imunidade presidencial não se aplica”, acrescentou.

O PROGRESSISTA BENFEITOR

Rodrigo Duterte chegou à Câmara Municipal de Davao “com o objetivo de restaurar a ordem na cidade”, mas terá sido um episódio específico, que se passou em 1996, a espoletar a sua obsessão com a erradicação do consumo de droga. Editha Caduaya, jornalista naquela cidade há quase 20 anos, conta ao Expresso o que se passou. Nesse dia, uma mulher de 67 anos pediu a Duterte uma curta audiência. Editha, que também estava presente, assistiu à conversa. “Ela entrou no gabinete dele a chorar e a pedir-lhe ajuda, porque o neto, numa noite em que se encontrava sob o efeito de drogas, a violara. Estava desesperada e pediu a Duterte que o matasse.” Duterte, continua a jornalista, pediu-lhe para “ter fé no sistema judicial e para confiar na polícia”. Na mesma semana, soube-se que um bebé de 18 meses fora violado e brutalmente assassinado pelo seu tio, quando também ele se encontrava alegadamente sob o efeito de drogas. Duterte convocou imediatamente uma reunião com oficiais do Exército e chefes da polícia e dos antinarcóticos para perceber o que se estava a passar. “Quando a reunião terminou, começou a grande guerra contra a droga na cidade”, conta Editha. “Duterte disse-nos um dia que as violações e os homicídios são cometidos por pessoas que estão sob o efeito de drogas.”

O Presidente pôs então em prática uma cartilha espartana que criminalizava tudo o que pudesse promover o vício, desde a proibição de fumar em locais públicos até ao recolher obrigatório para menores. Mas foi também ele que, pela primeira vez, se preocupou com a situação das minorias étnicas e religiosas nas Filipinas, nomeando vice-presidentes da Câmara para as comunidades muçulmanas e Lumad (população indígena do sul), porque, na sua opinião, “os líderes destas minorias estão em melhor posição de identificar e resolver os principais problemas das suas comunidades”. Legislou contra a discriminação da comunidade LGBT e tornou punível por lei a violência contra “trabalhadoras sexuais”, porque até o termo “prostitutas” passou a ser proibido.

Editha Caduaya conta ainda que Duterte abriu as portas da sua casa a crianças com cancro e que ofereceu bolsas de estudo a jovens vindos de contextos desfavorecidos, que contratou mais tarde para a Câmara da cidade. “Duterte cumpriu as promessas que fez em Davao. É por isso que toda a gente gosta dele. Em Duterte encontraram um líder forte, um salvador, um amigo e mesmo um pai.” Ao ser tão “simples”, o Presidente “quebrou a barreira que existia entre o Governo e a população”, diz Editha.

POPULARIDADE EM ALTA

De acordo com a mais recente sondagem conduzida pela Social Weather Station, uma empresa de análise de comportamentos sociais sem fins lucrativos sediada nas Filipinas, 83% dos filipinos têm “bastante confiança” no Presidente. A sua popularidade atinge os 89% na ilha de Mindanau, que o viu crescer, e chega a 75% em Visayas e em Manila. Duterte ganhou as eleições presidenciais de 9 de maio com 38,6% dos votos, o que corresponde a 15,8 milhões de eleitores, mais 7 milhões do que Manuel Roxas, do Partido Liberal, que obteve 23,45% dos votos e ficou em segundo lugar.

R.M., que em entrevista ao Expresso pede para ser identificado apenas pelas iniciais do seu nome, votou em Duterte. Optometrista em Manila, com 39 anos, diz que se identifica com a “atitude de Duterte de tolerância zero em relação à corrupção e ao tráfico de droga no país” e questiona: “Alguma vez a droga foi uma benefício para a sociedade?” Mencionando os esforços de Duterte em criar centros de reabilitação, R.M. diz que “a compaixão” do Presidente é de louvar e demonstra que ele “é um homem de grandes princípios, que deseja o bem-estar do país e da população”.

Arlyn Bangcaya, que tem 39 anos e é gerente na área de retalho, também acredita que Duterte é a melhor pessoa para liderar o país, com provas dadas na área do combate ao crime, mas critica o processo de limpeza que o Presidente tem levado a cabo. “Estes criminosos continuam a ser seres humanos e devem ser tratados como tal. Têm o direito de ser julgados em tribunal e não simplesmente ‘apagados’ ou alvo de ‘mortes acidentais’.” Arlyn diz também que “deter cabecilhas de grupos, traficantes ou toxicodependentes não é tão simples quanto monitorizar vendas. Não se pode simplesmente mobilizar as forças policiais para deter e matar tantas pessoas quanto possível, como se tivessem objetivos a atingir no final do mês”, conclui.

Apesar da violência das imagens que nos chegam do país, R.M. diz que se sente “mais seguro” desde que Duterte pôs em marcha a sua guerra contra as drogas. Já Arlyn afirma que por um lado se sente mais segura, mas que o “uso excessivo de força e poder contra suspeitos, sem que tenha havido qualquer investigação para provar a sua culpa, também cria um clima de insegurança”.

Doris Rachel, de 40 anos, que trabalha na área de Recursos Humanos de uma empresa de tecnologia sediada em Manila, diz que não votou em Duterte, porque o mais importante “é o carácter e o trabalho realizado” e não “a popularidade” de um candidato. Apesar de ser contra o consumo e tráfico de droga, continua a acreditar no Estado de direito. Diz que “eliminar pessoas enquanto estratégia de controlo ao crime é inadmissível”. Além disso, pouco mudou em questões de segurança, na sua opinião: “Continuamos a ter de adotar precauções extra onde quer que estejamos. A sociedade continua muito pouco disciplinada e incapaz de avaliar objetivamente a realidade: há imensa gente a viver na pobreza.”

A ‘SOLUÇÃO FINAL’

No início de outubro, Duterte prometeu matar três milhões de toxicodependentes, a ‘solução final’ de Hitler aplicada às Filipinas. “Hitler massacrou três milhões de judeus. Agora, há aqui três milhões de viciados. Gostaria de matá-los a todos. Se a Alemanha tinha Hitler, as Filipinas têm…”, e apontou para ele próprio.

Gideon Lasco, médico antropologista, questiona a dimensão do problema da droga no país e os números apresentados por Duterte. Apoiando-se num relatório do Dangerous Drugs Board, o investigador partilhou com o Expresso as conclusões que tirou sobre os hábitos de consumo de algumas comunidades mais pobres do país, com quem passou vários meses no último ano. Primeiro, o quadro geral: no total, há 1,8 milhões de pessoas, entre os 10 e os 69 anos de idade, que consomem droga no país, o que corresponde a 1,8% do total da população. Destas, 859.150 consomem metanfetaminas, substâncias sintéticas estimulantes que atuam ao nível do sistema nervoso central. O termo “consumidor” é usado no relatório para referir todos aqueles que consumiram droga pelo menos uma vez no último ano. Os números, sublinha Gideon, refletem uma descida em relação a anos anteriores.

Lasco encara o consumo de drogas não como uma causa mas como um sintoma de um grave problema social do país: “No meio desta economia informal, em que as oportunidades de trabalho são escassas e as condições de vida muito duras, os jovens recorrem muitas vezes a metanfetaminas para conseguirem manter-se acordados e com energia para trabalhar noites a fio. Alivia-lhes a sensação de fome e proporciona-lhes pequenos momentos de euforia nas suas vidas tão difíceis”, conta.

E QUEM O JULGA, AQUI NA TERRA?

Fatou Bensouda, procuradora-geral do Tribunal Penal Internacional, disse em outubro que a situação das Filipinas está a ser acompanhada de perto e que o TPI poderá ter competência para julgar os responsáveis pelas execuções extrajudiciais. Em resposta a isso, Duterte anunciou que o país pode vir a seguir o exemplo da Rússia e abandonar o tratado que estabelece o TPI. “Se a Rússia saiu, porque é que eu não posso sair também?”, questionou o Presidente, acrescentando que, se Pequim e Moscovo decidirem criar uma nova ordem, ele será o primeiro a juntar-se. Uma birra contra os Estados Unidos que lhe poderá custar os 180 milhões de dólares que o país recebe de ajuda internacional todos os anos. Como disse a atriz e cantora filipina Agot Isidro, que no Facebook chamou a Duterte “serial killer” e “psicopata”, “as Filipinas ainda são um país do Terceiro Mundo que precisa da ajuda e de aliados”. “Se o Presidente quer passar fome que o faça, mas sem arrastar ninguém com ele.”

Mas talvez não sejam as publicações exasperadas de uma celebridade nas redes sociais nem os relatórios inquietantes da Human Rights Watch a derrubar Duterte. O que lhe pode custar a confiança da população é a desculpabilização do regime de Ferdinand Marcos, que prendeu 70 mil pessoas, torturou 34 mil e terá morto mais de 3000, segundo a Amnistia Internacional. Esta semana, Duterte autorizou que Marcos fosse transladado para o Cemitério dos Heróis. Pela primeira vez desde a sua eleição, a população saiu à rua.

Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 26 de novembro de 2016