“Ainda estou à espera do escritor português que faça com o futebol o que Don DeLillo fez com o basebol”

 

Nos anos de 1970 e 1980, houve uma série de jornalistas que vieram dar à crónica futebolística um novo fulgor e brilhantismo literários. Deles, José Mário Silva, poeta e crítico literário do jornal Expresso, destaca Fernando Assis Pacheco (1937-1995), “que além de grande jornalista e conhecedor do futebol por dentro, fez do jogo um pretexto para criações literárias sobre a infância, a amizade, a memória e a nostalgia de um tempo em que ser o herói da rua em que se vivia era ambição bastante para os miúdos com jeito para o pontapé na bola”. “Memórias de um Craque”, editado em 2005 pela Assírio e Alvim, reúne precisamente algumas dessas criações literárias publicadas originalmente no jornal Record entre abril e novembro de 1972. Dotadas de uma “finíssima ironia e gozo na utilização da linguagem, sempre coloquial e certeira”, José Mário Silva considera as crónicas de Assis Pacheco “intemporais”.

Talvez também por isso a editora Tinta-da-China tenha dado início, no ano passado, à publicação da sua obra completa, com a edição de “Bronco Angel, o Cow-boy Analfabeto”, conjunto de textos publicados em 1983 no jornal satírico “O Bisnau”, dirigido pelo também jornalista e amigo Afonso Praça. Considerado um dos autores mais singulares da segunda metade do séc. XX em Portugal, Fernando Assis Pacheco, o escritor que não se levava demasiado a sério mas levava a sério tudo aquilo que fazia (como salientava recentemente Carlos Vaz Marques numa entrevista ao Público), escreveu sobre o seu tempo como mais ninguém o fez: com um humor e ironia brilhantes, e uma sensibilidade sem igual. No dia em que Assis Pacheco faria 77 anos, Nuno Costa Santos escreveu sobre ele na sua crónica semanal na revista Sábado: “Quando penso em Assis Pacheco penso num jogador que praticava o futebol jornalístico-literário com muita verve. Capaz de gozar o mundo, de se meter consigo próprio e de sentir quase tudo com uma melancolia essencial de quem sabia que, com tanto risco e jogo, iria bater a bota numa hora não muito distante”.

“O futebol é impreciso e inesperado, cheio de mortalidade”
Outro autor destacado por José Mário Silva é Dinis Machado (1930-2009), “cujas prosas sobre futebol foram sempre muito mais do que crónicas sobre futebol”. O jornalista e escritor português escrevia, entre outros, para o Record, Norte Desportivo, Diário de Lisboa e Diário Ilustrado, quando foi convidado por Carlos Pinhão, outro nome maior do jornalismo desportivo da segunda metade do século XX, para escrever para A Bola. Muitos dos textos publicados nestes jornais foram recentemente reunidos e publicados no volume “A Liberdade do Drible” (Quetzal), com edição e organização de Marta Navarro. Numa dessas crónicas, o autor de “O Que Diz Molero” descreve o futebol de uma forma muito bonita. “A grande euforia de qualquer arte espontânea (chamemos-lhe assim por razões de abertura), como o futebol, é que está a fazer-se no movimento, ainda não é sinfonia, o guache, o livro, o filme, a peça que se fez a seu tempo. É efémero como o bailado, decide-se no apuro e na linguagem do corpo, mas tem uma carga quase infinita de rumos imprevisíveis e ocasionais”. O futebol, concluía depois o escritor e jornalista, é “impreciso e inesperado, cheio de mortalidade”.

Como legado, escritores como Fernando Assis Pacheco e Dinis Machado deixaram-nos “uma visão algo romântica do futebol, enquanto lugar que espelhava as grandezas e misérias de todos nós, os os comuns mortais, que são incapazes de dar três toques seguidos na bola”, diz José Mário Silva. Na sua opinião, esta “visão romântica foi aniquilada, substituída pela obsessão pelos números, pelas estatísticas, pelo rigor das táticas e, sobretudo, pelo fatores económicos de um negócio de milhões”. Essa transformação, afirma o crítico literário, reflete-se na forma como se escreve atualmente sobre futebol, em que o “contar” deu lugar ao “explicar”. “Hoje, na era do acesso absoluto e em tempo real a toda a informação imaginável, quando podemos ver jogos no telemóvel e analisar jogadas em detalhe, saber quantos passes fez determinado jogador (mais a respetiva percentagem de acerto) e quantos quilómetros correu outro, já não é preciso que nos contem o que se passou, apenas que nos expliquem o que se passou. É outra coisa, e não tem tanta graça”, aponta.

Quanto às crónicas futebolísticas, elas tendem hoje em dia a “ser excessivamente analíticas, quanto ao que se passa dentro do campo, ou excessivamente especulativas, quanto às tricas, ‘mind games’, clubites agudas e guerras institucionais que ocorrem fora das quatro linhas”. “Infelizmente, há cada vez menos lugar para a paixão e para o lirismo”, acrescenta José Mário Silva, que considera, no entanto, que é em alguns blogues e até, “em modo epigramático”, em algumas contas de Twitter, que ainda podemos encontrar quem escreva “à antiga, com garbo e verve”.

Se isto é diferente em Portugal comparativamente a outros países? Se a crónica sobre futebol tem um peso e importância maiores lá do que cá? Se se ocupa, simplesmente, de temas diferentes, menos ou mais interessantes? Se a escrita, lá, tem qualidades que os nossos jornalistas e escritores não conseguem alcançar cá? José Mário Silva não sabe. Mas tem a impressão de que a crónica futebolística em Portugal “se ocupa mais com questões acessórias, com a vaidade dos presidentes dos clubes e as lutas pelo poder nos órgãos da Liga e da Federação, com as rivalidades clubísticas e as discussões sobre arbitragens”. E que se ocupa mais com tudo isso “do que devia”.

Estará o futebol assim tão excluído dos nossos romances?
A literatura sobre futebol – ou o romance que traz o futebol para o universo da literatura – não tem uma expressão muito significativa no meio editorial em Portugal. José Mário Silva admite que há uma “sub-representação [do futebol] na literatura portuguesa, tendo em conta o peso que este desporto tem na sociedade”, mas afirma que os exemplos não são tão escassos assim. Fernando Venâncio, Manuel Alegre, Joel Neto, Rui Zink – todos eles escreveram romances com futebol dentro, assinala o crítico literário. Mais recentemente, temos o exemplo de João Ricardo Pedro, que no seu segundo romance, “Um Postal de Detroit”, escreveu “páginas magníficas” sobre a equipa do Sporting treinada por Bobby Robson e, em particular, sobre o búlgaro Krasimir Balakov, “que vestiu a camisola 10 ‘como quem usa o brasão de uma dinastia’ e era ‘um desses jogadores que frequentam o meio-campo com a mesma aparente displicência com que frequentaram os baldios das suas infâncias, mas que, de um momento para o outro, ou seja, no momento certo, se lançam em solitárias arrancadas que acaso largassem um rasto de tinta deixariam desenhadas no relvado enigmáticas formas geométricas’”. De entre os escritores de outras nacionalidades que escreveram sobre futebol, José Mário Silva destaca três, Nick Hornby, Javier Marías e Eduardo Galeano, sublinhando, no entanto, que esta lista está longe de estar completa.

Quantidades astronómicas de dinheiro envolvidas, transações milionárias, maior competitividade e qualidade, mais poder, promiscuidade, corrupção, sendo dela exemplos o escândalo que estalou em março do ano passado envolvendo altos dirigentes da FIFA ou o esquema de subornos montado em torno do local escolhido – Salt Lake City, no estado norte-americano do Utah – para a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002. O futebol, enquanto fenómeno ou espetáculo – ou aquilo que orbita atualmente à volta dele – é completamente diferente do que era há uns anos. Antunes Lobo Antunes falava disso numa entrevista ao jornal A Bola, conduzida por Vítor Serpa. “Não gosto de ver os treinadores como umas figuras distantes, que nem comem à mesa com os jogadores e que passam a vida a fazer treinos à porta fechada, para esconder a tática. E também não gosto dos treinadores que passam a vida a falar naqueles termos que eu detesto, as linhas de passe, a pressão alta, os losangos. Posso parecer um velho saudosista a falar, mas, para mim, o futebol pelo qual tinha paixão era o do deprimido debaixo dos paus e dos dez eufóricos a correrem no campo e a mandarem brasa.”

José Mário Silva, no entanto, não tem dúvidas de que o futebol, “por convocar tantas paixões e ódios, comunhões e combates, sublimações e catarses”, continua a ser um “excelente” tema para um romance. “Ainda estou à espera do escritor português que faça com o futebol o que o Don DeLillo fez com o basebol na longa e maravilhosa abertura de ‘Submundo’. Gostava muito de ler algo semelhante, mas passado num estádio de futebol português”, diz o crítico literário, deixando uma sugestão: “Porque não umas 70 páginas vertiginosas a descreverem em detalhe o jogo em que o Sporting Clube de Portugal alcançara o hexacampeonato, lá para o ano de 2022? Deixo a sugestão aos ficcionistas, esperando que se limitem a antecipar a realidade”.